Em marcha lenta, o motor Alfa Romeo a diesel, de 11 litros, soa como o arfar de um dragão descansando no fundo da caverna. Um pouco de acelerador e o som se transforma no rugido do leão da Metro. Daí para a frente, entram uma batida metálica na cadência de rabo de vira-lata feliz e, como ápice, o grave de um helicóptero Huey em rasante sobre acampamentos vietcongues. Viajar na boleia de um FNM é o caos e a glória. Nenhum outro caminhão tem tanta personalidade acústica - e isso vicia, como pude constatar ao longo de seis dias e 1.535 quilômetros de estrada, de Leopoldina, em Minas Gerais, até Salvador.
A ideia de formar um comboio com três Fenemês até a capital baiana foi de fãs da extinta marca. Osvaldo Strada fez a vida criando softwares para os maiores bancos do país mas, fazendo jus ao sobrenome, gosta mesmo é de estar ao volante dos FNM/Alfa Romeo. Coisas da genética, já que seu pai era caminhoneiro, ou melhor: "alfeiro" (é assim que se denominam os motoristas e adoradores dos veículos que eram fabricados em Xerém).
Eis que Osvaldo hoje tem uma frota de dez destes caminhões restaurados. Dois participaram da viagem a Salvador e podem ser vistos abaixo: o plataforma ano 1965, com cabine standard FNM (cor verde seda, a mais tradicional da marca), e o belo modelo 1961 com cabine Brasinca, verde escuro.
Fechando o trio da pesada, entrou um cavalinho mecânico ano 1964. É de Miklos Stammer, capitão de cargueiros da Marinha mercante e alfeiro nas horas vagas. Em criança, ele e o irmão Robert moravam no interior de São Paulo. Para chegarem à escola, tinham que pegar carona e acabaram estabelecendo um sistema de pontuações: carro valia menos, caminhão "comum" tinha nota intermediária e FNM levava o grau máximo pelo ronco.
A Osvaldo e Miklos se juntaram outros viajantes. O paranaense Ito Bir foi caminhoneiro profissional: começou a dirigir FNM aos 15 anos, acompanhando um irmão mais velho. Hoje, após 27 anos fora da ocupação, ainda consegue antever com espantosa precisão cada trecho da BR-116.
Zeca Reinert, que trabalha com recursos humanos, é filho de alfeiro e sabe tudo sobre a marca de Xerém. Dando suporte técnico, entrou Adalberto Teixeira Santos, o Beto. Ex-caseiro de Osvaldo, tomou gosto pela mecânica e hoje restaura os Fenemês da frota.
Miklos, Ito e Zeca partiram de Curitiba. Osvaldo e Beto, de São Paulo. Entrei no grupo em Leopoldina, numa parada técnica em 29 de janeiro.
No Brasinca, com Osvaldo ao volante, é hora de conhecer um pouco da máquina. Na transmissão, há uma caixa de câmbio convencional (de quatro marchas, com alavanca de curso impreciso), e uma de reduzida, o que dá um total de oito diferentes relações.
O câmbio não tem sincronizadores: o motorista que tenha ouvido e sensibilidade para passar a marcha no tempo (muitas vezes dispensando o pedal de embreagem).
Achou complicado? Tem mais... as duas caixas vão sendo usadas alternadamente. Na hora de passar de segunda marcha simples para a terceira reduzida, por exemplo, o motorista usa ambas as mãos para mover as duas alavancas ao mesmo tempo (uma no painel e outra no assoalho), em um movimento muito rápido para não largar o volante por muito tempo... De terceira simples para quarta reduzida, a mesma coisa. E, não esqueça: com ouvido ligado na rotação do motor para não arranhar - isso que é arte!
FONTE: O Globo