Facchini

Caminhoneiros do Brasil, um relato

Hoje, ao conversar com o motorista (do jornal, óbvio) a caminho do aeroporto, descobri como é dura a vida dos que trabalham com caminhão.
Confesso que, apesar de ser uma profissão de machões ou de mulheres estigmatizadas como “sapatões”, sempre achei que deveria ser divertido trabalhar na estrada. Primeiro porque adoro dirigir na estrada. Segundo porque a pessoa deve conhecer o Brasil em todos os seus rincões e deve ver paisagens lindíssimas que nem sonhamos que existem. Terceiro pela sensação de liberdade, por não ter, necessariamente, que lançar âncora em lugar nenhum (coisa que a gente acaba fazendo vez ou outra, mas até hoje não ancorei de vez).
Mas eu me “esqueci” da pressão pela entrega dos produtos, do baixo pagamento, que tenta ser contornado com horas absurdas de trabalho sem sono, das estradas em estado deplorável (especialmente as mineiras) etc.
E o que ele me contou, da rotina que levou por muito tempo, enquanto foi caminhoneiro, me acordou.
Era assim (tirado de memória da conversa às 5h30):

Fernão Dias é meu lar
“Eu conhecia a estrada São Paulo-Beagá como a palma da minha mão, porque fazia ela quase todo dia. Mas enquanto os carros normais levam oito horas para cumprir os 650 km de distância, eu levava sete. Sete horas de caminhão!
Saía às 22h com o carregamento cheio e chegava a Beagá às 5h. Descarregava a mercadoria, dormia só uma hora de sono e voltava às sete horas até São Paulo, chegando aqui umas 15h.

Uma hora de sono
Às 21h, eu tinha que estar de volta para começar tudo de novo. E tinha medo de dormir entre 15h e 21h porque eu morava na Penha e pegava um trânsito grande até o depósito. Um dia eu dormi e depois peguei um acidente no caminho, congestionou tudo e só consegui chegar no serviço às 23h. Já fui partindo, na correria, pra Beagá.
Fazia sempre dois dias de trabalho, pra um de folga. Na folga eu dormia o dia intero, pra compensar. Mas no trabalho eram 14 horas por dia com uma hora de sono só.

Férias de um ano, nove anos sem férias
Fiquei assim por nove anos, sem férias. Um dia não aguentei: pedi as contas. O empregador ofereceu 15 dias de férias e eu respondi: “Que 15 dias o quê! Eu vou pra Natal e vou sumir. Quero minha demissão!” Eles pagaram tudo e eu tirei um ano inteirinho de descanso. Não fiz mais nada além de descansar nesse ano.
Depois eu voltei pra São Paulo e recomecei no trabalho com caminhão. Fiz, além de Beagá, Curitiba e Rio. O Rio era mais perto, mas detesto aquele lugar: fui assaltado duas vezes e, na última, atiraram contra o caminhão. No dia seguinte falei: “Trabalho em qualquer lugar, mas, no Rio, nunca mais.” Cheguei a fazer Brasília, saindo às 13h e chegando lá só de madrugada.

Um soninho tão bom…!
No natal a correria aumenta e eu chegava a fazer vários dias sem folga e sem dormir. Num dia, descendo a serra de Igarapé, cochilei no volante. Até sonhei, foi tão bom…!
Acordei com a buzina de uma carreta no meu ouvido.
Eu estava indo pro acostamento. Foi a única vez que dormi no volante e nunca me acidentei.
Na mesma hora parei no primeiro posto que vi e dormi até recuperar as forças. Porque quando o sono vem, não tem alarme que seja suficiente, não adianta tomar café ou lavar o rosto: você dorme mesmo, apaga. E em um segundo pode causar uma tragédia.

A tragédia do rebite
Eu nunca usei rebite. Meu rebite é o meu sono, nada substitui. Não gosto porque é droga, vicia. No começo você toma um comprimido para ficar nove horas acordado. Depois precisa tomar dois comprimidos pra ficar o mesmo período. Vai cada vez fazendo menos efeito.
Conheci um cara que já estava tomando uma cartela de 30 comprimidos para ficar acordado só três horas! Eu falava com ele: “Você deve ter uma farmácia aí dentro, né? Faz muito mais efeito dormir.” Naquela época a gente trabalhava com transporte de soja e levava dias só na fila para descarregar no porto, dava pra dormir no sofá do caminhão numa boa, por várias horas. Mas ele já estava era viciado mesmo.
E tem uma história que aconteceu com um amigo meu que me serve de exemplo para nunca tomar rebite. Ele ia pra Bahia com a mulher, grávida de um bebê, o primeiro filho deles. Foi dirigindo de São Paulo a Beagá, depois de lá pra Governador Valadares, direto. Chegando em Valadares, tomou rebite pra continuar acordado. Quando estava na divisa com a Bahia, apagou. Acordou só 20 dias depois, saído do coma.
Sua mulher e o bebê já estavam enterrados. E ele nunca mais quis ver um caminhão em sua frente.
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