Facchini

Sem espaço no mercado, caminhoneiras lamentam preconceito

Mulheres que estudaram e se qualificaram para conseguir se manter no mercado de trabalho, as caminhoneiras Lenilce Barboza, de 40 anos, e Ianara Borges de Freitas, de 32, lutam há anos para convencer as empresas de que estão tão qualificadas quanto os homens.
Lenilce está na profissão há cinco anos. Começou quando veio de Porto Velho (RO) com o ex-marido. Tem carteira de habilitação categoria E, ou seja, pode dirigir qualquer tipo de caminhão.
A paixão por veículos nasceu aos 16 anos, quando trabalhava em uma concessionária. Com o tempo conheceu o companheiro. Em 2012 vieram para Cuiabá, onde ela começou a trabalhar como caminhoneira.
De início os dois viajavam juntos, revezando-se no volante do caminhão do qual eram donos.
“Não aprendi a profissão com ele, mas sim fazendo cursos. Em Porto Velho abriu a Cesac (Usina Hidrelétrica Santo Antônio), e o Governo Federal deu curso pra quem tinha categoria D e E. Então eu fiz”, disse Lenilce.
Em 2014 o caminhão do casal quebrou e ela começou a procurar emprego em empresas e empreiteiras. Foi nesse momento que começaram as dificuldades em se inserir no mercado de trabalho.
“Mas como eu vou trabalhar, se eu me atualizo, atualizo e, na hora da contratação, eles [as empresas] falam: ‘Não tem como, você não está apta para a empresa’, mesmo a gente estando atualizada em todos os cursos?”, perguntou a caminhoneira.
Cansada de procurar as empresas e receber respostas negativas, Lenilce decidiu iniciar uma campanha junto a outras mulheres que também se qualificaram e não conseguem emprego na área.
“Toda cidade tem um Conselho da Mulher. Então fui atrás do conselho. Falei para elas: ‘Há um ano eu estou parada, tenho os cursos exigidos para a área de carreta. As empresas falam que precisam, a gente faz esse curso, mas na hora, não sou contratada”, contou.
Com o apoio do conselho, Lenilce organizou outras mulheres e começou a divulgação da campanha “Mulheres que Brilham no Volante”, com o intuito de abrir portas para que elas também sejam aceitas na profissão de caminhoneiras em Mato Grosso.
“Tem colegas nossas que fizeram o curso e foram para o Paraná para poder dirigir uma carreta, porque lá o preconceito é bem menor. Vai fazer um ano que estou parada. De vez em quando faço um freelancer, mas não é uma coisa segura. Hoje você tem, amanhã você não tem”, explicou.
Quando iniciou a campanha, ela pediu que colegas de profissão a ajudassem a reunir mulheres que estivessem na mesma situação.
Ianara Borges de Freitas foi uma das primeiras apoiadoras. Desempregada há três anos, a caminhoneira tem cursos para transporte de pessoas, operadora de colheitadeira de grãos, escavadeira, o MOPP (Movimentação e Operação de Produtos Perigosos) e especialização em escavadeira hidráulica.  
Começou na profissão por acaso, anos após se apaixonar pelos ônibus em seu primeiro emprego, aos 16.
“Quando vim aqui para Cuiabá, meu primeiro emprego foi em um posto de gasolina. Fui a primeira mulher a trabalhar em Cuiabá como funcionária de posto de gasolina. Tanto é que eu usava uniforme de homem na época, porque não tinha de mulher”, contou.
No posto, Ianara conta que via os ônibus que iam abastecer e foi gostando de mexer com diesel. Mas sofreu para tirar a primeira habilitação.
“Na época não ganhava muito. Tive que cortar muitas despesas em casa para conseguir tirar a primeira habilitação. Foi sofrido, foi uma batalha. Minha mãe era separada do meu pai. Então só eu trabalhava”, lembrou.
Dois anos após tirar a carteira, transformou-a na categoria D, o que permitiu que tirasse a documentação profissional de motorista.
A mãe aceitou e apoiou sua decisão desde o início. Já o restante da família a considerou "louca" e tentou incentivá-la a fazer outra coisa.
“Difícil foi arrumar o primeiro emprego. Trabalhei um ano para pegar experiência sem carteira assinada. Eu fiz curso de condutor de pessoas, fiz MOPP..”.
O primeiro emprego não teve carteira assinada. Trabalhava viajando para Santa Catarina de ônibus, como transporte turístico.
“Isso foi um ano trabalhando escondido, com holerite falsificado, porque a empresa não assinava minha carteira e eu não podia parar em um posto fiscal sem estar com holerite, sem estar com tudo registrado com a empresa, ”, contou Ianara.
Durante esse ano ganhava R$ 50 por dia de viagem. Dinheiro que aceitava com o intuito de acumular experiência. Até chegar a conclusão que não dava mais.
“Era tanto preconceito que o outro motorista deixava eu dirigir só depois da meia-noite, quando os passageiros estavam dormindo. Ninguém via o que eu estava fazendo, quem era a motorista. Eu trabalhava assim, só dirigia da meia-noite às 6h da manhã”, lembrou.
Quando saiu da empresa, foi distribuir currículos e encontrou no caminho um chefe espanhol que mudou sua vida.
“Ele falou: ‘Vou abrir as portas pra você’. Não tinha nada de experiência na carteira de trabalho na época, nada. Era a minha palavra que eu sabia dirigir o ônibus contra uma carteira vazia, que não tinha nenhum registro”, disse.
Ianara ficou nessa empresa por três anos. Começou com o caminhão caçamba e trabalhou na obra de duplicação da estrada de Chapada dos Guimarães, em 2010.
“De lá surgiu a oportunidade de eu pegar uma máquina de pavimentação, que era de reciclagem de material asfáltico. Dessa máquina eu fui parar no Pará, fiquei trabalhando lá dois anos e meio”, contou.
Durante esse tempo, teve a oportunidade de também trabalhar com uma recicladora e uma escavadeira e foi se aperfeiçoando.
Foi nessa empresa que conheceu o marido, que trabalhava no escritório e sempre apoiou sua profissão. Mas ela conta que a expectativa dos homens, quando sabiam que ela iria para a obra, era sempre de que ela seria homossexual.
Ainda assim ela garante que sempre foi muito respeitada por todos os homens.
Nessa época Ianara ficava até três meses fora de casa, voltava, ficava uma semana e retornava para o trabalho. Até que começou o curso de pilotagem de Aeronáutica, na Universidade de Cuiabá (Unic).
“O patrão falou: ‘Se você já não vai viajar mais, não pode mais ficar na empresa’. Aí me mandaram embora pelo fato de eu ter começado a estudar”, contou.
Desde então Ianara não conseguiu mais nenhum emprego na área pelo impedimento de viajar. Ficou três anos parada e está tentando voltar para o mercado de trabalho.
“O nosso meio para mulheres arrumarem serviço é muito complicado. Tem muito preconceito, as portas são muito fechadas para nós. Só um contratante que já teve uma funcionária mulher, ou que tenha mente aberta, contrata”, disse.
Segundo Ianara, até mesmo quando contratadas há grande diferença no salário entre homens e mulheres.
Apesar das dificuldades, as duas garantem que não se arrependem da profissão.
“O momento que você se arrepende é só quando você leva um não na cara, que você chega com seu currículo, tudo em dia, com as suas qualificações, e falam: ‘Essa vaga não serve para você’. É o momento que você fala: ‘Poxa, por quê? Por que eu escolhi essa profissão?’, disse Ianara.
“É algo assim: O que a gente luta, a gente consegue, quando você faz com amor. Se você está ali, se capacita, corre atrás, uma hora você consegue. Minha felicidade é estar em cima de uma carreta”, disse Leunice.
Leunice tem dois filhos e mantém a casa somente com freelances. Já Ianara tem conseguido manter a casa com a venda de açaí na rua, já que o marido também perdeu o emprego.
Elas acreditam que o preconceito é ainda maior em Mato Grosso.
“É só ver na internet a quantidade de motoristas que existem fora de Mato Grosso. E as que vem pra cá é porque estão de passagem. No Paraná, por exemplo, eu acho que é mais aberto, o pessoal tem mais visão de que uma mulher pode sim fazer o trabalho igual de um homem. Ela tem capacidade, ela se profissionalizou para isso”, disse Ianara.
Lenilce, que se considera feminista, disse que a campanha que está promovendo busca mostrar que lugar de mulher é onde ela quiser. E tem usado como slogan a frase: “Pra que tantos cursos se na hora ninguém contrata?”.
Ianara acredita que o que falta é os contratantes abrirem a mente.
“Porque se você não abrir a porta como nós vamos ter experiência? É muito raro as empresas aqui em Cuiabá que abrem as portas, as que abrem tem que ser louvadas”, disse a caminhoneira.
FONTE: Mídia News 
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